O Navio fúnebre anglo-saxónico de Sutton Hoo foi provavelmente o último do seu género. A descoberta arqueológica feita em Sutton Hoo – retratada no filme ‘A Grande Escavação’ – é talvez o último vislumbre de uma tradição funerária medieval inglesa.
Os arqueólogos podem ser pessoas muito cuidadosas. São pessoas que questionam os dados a cada passo e tendem a rejeitar qualquer indício de sensacionalismo. Mas, se falarmos nos antigos túmulos de Sutton Hoo, no sudeste de Inglaterra, até o estudioso mais circunspeto é capaz de se desfazer em superlativos. Magnífico! Monumental! Inigualável!
Em 1939, arqueólogos descobriram um cemitério anglo-saxónico com 1400 anos de idade num local que incluía um navio completo, bem como um depósito estonteante de túmulos. Esta descoberta espetacular alterou a compreensão dos historiadores sobre o início da Idade Média na Grã-Bretanha, diz Sue Brunning, a curadora que cuida dos agora lendários artefactos no Museu Britânico. “Transformou tudo num ápice.”
Oitenta e dois anos depois, o navio fúnebre de Sutton Hoo está de regresso aos olhos do público graças ao filme A Grande Escavação, um novo filme da Netflix interpretado por Carey Mulligan, Ralph Fiennes e Lily James. Mas, no início do século VII d.C., quando a última pá de terra foi atirada sobre este guerreiro anglo-saxónico e respetivos tesouros, a prática de enterrar os mortos com pilhas de joias estava a desaparecer. Um século depois de Sutton Hoo, a maioria dos enterros ingleses continha pouco mais do que corpos em decomposição. O que provocou esta mudança?
“Os humanos enterraram pessoas em barcos durante séculos e milénios”, diz Sue Brunning. O mesmo acontecia com bens mortuários. Nos primeiros anos da Europa medieval as pessoas eram quase sempre enterradas com pelo menos algumas das coisas que amavam, desde contas a moedas, selas para cavalos e muito mais.
O túmulo de Sutton Hoo foi descoberto por Basil Brown, um escavador amador contratado pela proprietária do terreno, Edith Pretty, que estava curiosa para descobrir o que havia debaixo da sua propriedade em Suffolk, perto do rio Deben. Durante uma série de escavações, Basil desenterrou lentamente 263 objetos preciosos enterrados com um navio anglo-saxónico de 24 metros de comprimento. Os achados opulentos, feitos de materiais que variavam entre ferro, ouro, ossos e penas, incluíam um elmo com a forma de um rosto humano, colchetes de ombro delicadamente trabalhados, utensílios domésticos e armas – muitas com ligações a lugares tão distantes como a Síria e o Sri Lanka.
Quando os artefactos de Sutton Hoo foram descobertos, mudaram instantaneamente a imagem que os historiadores tinham de uma era outrora chamada Idade das Trevas. Os bens mortuários eram primorosamente fabricados com materiais de todo o mundo e sugeriam que a sociedade medieval retratada em poemas épicos como Beowulf podia ser mais realidade do que mito. “Basicamente, estes tipos de coisas eram considerados fantasia”, diz Sue.
Mas a prática de decorar túmulos já tinha começado a desvanecer quando a elite anglo-saxónica de Sutton Hoo deu o seu último suspiro. Entre os séculos VI e VIII d.C., os túmulos em Inglaterra tornaram-se mais simples.
Tradição moribunda
Na tentativa de compreender como e por que razão esta prática morreu, a arqueóloga Emma Brownlee, investigadora do Girton College da Universidade de Cambridge que se especializou em práticas fúnebres medievais, analisou registos arqueológicos que documentam mais de 33.000 túmulos medievais. A sua análise, publicada recentemente na revista Antiquity, englobou 237 cemitérios no noroeste da Europa, a maioria dos quais em Inglaterra.
Recorrendo a descrições e desenhos de dezenas de milhares de túmulos escavados nos últimos 60 anos, Emma Brownlee calculou meticulosamente o número médio de objetos por sepultura. Emma também reuniu outras informações importantes, como por exemplo há quanto tempo os cemitérios estavam em uso e o que as técnicas de datação mais confiáveis sugeriam sobre a sua idade.
Depois, começou o processamento de números. O mapa de Emma mostra Inglaterra a abandonar os bens mortuários em meados do século VI. Quando o guerreiro anglo-saxónico foi enterrado em Sutton Hoo, por volta do ano 625 d.C., os enterros com bens estavam a desaparecer.
“Depois do século sétimo, ninguém era enterrado com coisas nos seus túmulos”, diz Emma.
Uma vez que estes dados estão mais focados em Inglaterra, Emma alerta que o povo inglês pode não ter sido o primeiro a abandonar esta prática. Contudo, os seus dados mostram que Inglaterra adotou enterros mais simples por volta do ano 720 d.C., enquanto que o resto do noroeste da Europa levou mais de meio século para fazer o mesmo.
O nascimento de Inglaterra – e a morte dos bens mortuários
A evolução das práticas de enterro coincidiu com uma época de alterações profundas em Inglaterra. Outrora sob o domínio romano, Inglaterra tornou-se independente por volta do ano 410 d.C. e enfrentou vaga após vaga de invasores, incluindo os germânicos anglos e saxónios.
Entre os anos 400 e 600, os poderes pagãos fundiram-se em reinos que se converteram ao cristianismo no século VII. Os reinos anglo-saxónicos mais fortes sobreviveram à invasão Viking que começou no século IX e uniram-se enquanto Reino de Inglaterra em 927, formando a base para a monarquia britânica da atualidade.
Acredita-se que o guerreiro enterrado com o navio tenha sido um rei anglo-saxónico, talvez Redualdo da Ânglia Oriental, que entre os anos 599 e 624 governou um reino que incluía Suffolk. As datas nas moedas descobertas no local coincidem com o seu reinado, e a qualidade e valor dos bens mortuários sugerem uma pessoa de extrema influência.
A própria sepultura é um exemplo de poder. “O ato de arrastar um navio pela colina acima desde o rio, cavar um buraco com tamanho suficiente para o conter e construir uma câmara mortuária é quase como uma peça de teatro”, diz Sue Brunning. “Podemos imaginar que este processo envolveu grupos enormes de pessoas. O funeral em si teria sido uma ocasião solene, e o [túmulo] seria tão grande que provavelmente podia ser visto por quem navegava no rio.”
Os arqueólogos acreditam que Sutton Hoo também foi o local de enterro dos familiares deste membro da realeza, que foram sepultados em 17 outros montes perto do suposto rei. Também foi encontrado no local outro navio mais pequeno.
O poder político pode ter sido a chave para a alteração nas práticas de enterros, diz o arqueólogo Heinrich Härke, especialista em sepulturas da época medieval e professor na Universidade HSE em Moscovo, que não participou na investigação. “À medida que os líderes de toda a Inglaterra começaram a consolidar o poder e a formar reinos durante o século VI, pode ter sido menos importante para as pessoas exibirem o seu poder em enterros ornamentados.”
Andrew Reynolds, arqueólogo da Universidade College de Londres é especializado na época medieval e tem a sua própria teoria: “A ascensão dos reis empobreceu todos os que não estavam no estrato superior.”
“O aumento do controlo das famílias reais inglesas sobre os recursos e sobre os terrenos foi o primeiro golpe mortal nas liberdades anteriormente desfrutadas pelas comunidades de pequena escala”, diz Andrew. “A riqueza tornou-se polarizada.”
Depois, seguiu-se a ascensão do cristianismo. À medida que esta nova religião se consolidou pela Europa, os túmulos em montes saíram de moda e os locais de descanso reais migraram para cemitérios ou túmulos dentro de igrejas e catedrais. O número de bens mortuários também diminuiu. A partir do século VIII, tanto membros da realeza como o povo eram geralmente enterrados com nada mais do que um manto, itens pessoais de joalharia ou ornamentos cristãos como cruzes.
Andrew encara o enterro de Sutton Hoo como uma parte dessa transição, sobretudo porque parece ter sido o local de enterro de apenas uma família anglo-saxónica, em vez de fazer parte de um cemitério maior.
“Todos os enterros de estatuto elevado deste período estão situados longe dos cemitérios usados por pessoas de estatuto inferior”, diz Andrew. “O que estamos a ver aqui é uma tentativa de pessoas que controlavam o acesso a bens de estatuto elevado, e que quase certamente tinham um poder ao nível local, a diferenciarem-se dos outros, não só através da aquisição de itens de ostentação, mas também para se distanciarem em termos de espaço.”
Emma Brownlee, por outro lado, acredita que o aumento do comércio e das ligações por toda a Europa Ocidental, e não a ascensão do poder monárquico, explica a tendência para os enterros mais simples. “A mudança na maioria das práticas de enterros aconteceu através da comunicação entre pessoas de estatuto social semelhante”, teoriza Emma, citando modelos sociológicos e linguísticos que mostram que as mudanças culturais se propagam mais depressa quando surgem entre pares.
Talvez o túmulo de Sutton Hoo tenha as suas raízes no medo que a realeza sentia, diz Sue Brunning. “Existem muitas teorias sobre se isto não seria uma reação à chegada do cristianismo – uma última celebração da forma pré-cristã de fazer as coisas. Podia ser um sinal de insegurança em vez de força, um gesto simbólico que disfarça alguns sentimentos um tanto ou quanto inseguros.”
Inconclusivo
Sem evidências definitivas, é difícil para os estudiosos discernir como é que as práticas de enterros do passado se encaixam nas mudanças sociais mais amplas. Mas uma parte ainda por escavar em Sutton Hoo oferece um vislumbre de esperança para responder a esta questão, pelo menos sobre a Inglaterra medieval.
Depois da escavação inicial de Basil Brown, dois outros projetos de escavação continuaram a explorar o local até ao início da década de 1990. Mas parte do campo de túmulos perto do famoso navio foi “deixada para as gerações futuras com novas questões e novas técnicas”, disse em 2019 um porta-voz do National Trust ao East Anglian Daily Times.
Por enquanto, os investigadores vão ter de se contentar com o que já foi desenterrado por Basil e pelos seus sucessores ou, como Emma está a fazer, tentar extrair novas informações de dados antigos. Entretanto, Sue e os seus colegas curadores vão preservar meticulosamente os artefactos encontrados em Sutton Hoo – objetos que revelam uma era de realeza que os historiadores chegaram a descartar como sendo mítica antes da descoberta feita por Basil Brown.
Independentemente das razões que levaram à criação do túmulo de Sutton Hoo, vale sempre a pena pensar sobre o que levava as pessoas do passado a enterrarem os seus mortos de determinada forma e o que incluíam (ou não) nesses enterros.
“Os túmulos são uma das poucas partes do registo arqueológico que foram deliberadamente enterradas”, diz Emma. “Quase tudo o resto é acidental. Cada item foi ali colocado com um propósito específico. Redescobrir esse propósito faz parte do desafio.”
Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site nationalgeographic.com
FONTE: National Geographic Brasil
BLAKEMORE, Erin. Navio fúnebre anglo-saxónico de Sutton Hoo foi provavelmente o último do seu género. National Geographic Brasil. São Paulo, 03 de fev. de 2021. Disponível em: <https://www.natgeo.pt/historia/2021/02/navio-funebre-anglo-saxonico-de-sutton-hoo-foi-provavelmente-o-ultimo>. Acesso em: 04 de fev. de 2021.
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