O primeiro ataque em grande escala à Grã-Bretanha é o marco inaugural da 'Era Viking'. Por que este ataque foi tão importante — e o que aconteceu depois?
Certas datas na história mundial vivem para sempre, tal qual Franklin D Roosevelt colocou na infâmia; o ataque a Pearl Harbor em 7 de dezembro de 1941 e mais recentemente, o terror do World Trade Center em 11 de setembro de 2001, são duas delas, por exemplo.
Uma dessas datas é 8 de junho de 793 d.C., quando os vikings atacaram o mosteiro de Lindisfarne, uma ilha costeira na Nortúmbria (atual Northumberland) no nordeste da Inglaterra. Enquanto, a perda numérica de vidas foi menor do que em ataques posteriores, a incursão foi em escala e natureza chocantes. Monges foram mortos à espada, preciosos artefatos religiosos roubados e o santuário da igreja de São Cuthbert profanado. Foi o primeiro ataque desse tipo, dando início ao que hoje é conhecida como a Era Viking.
Roubo violento e matança
A Crônica Anglo-Saxônica nos diz simplesmente que "as lamentáveis incursões de homens pagãos destruíram a igreja de Deus na ilha de Lindisfarne por meio de ferozes roubos e matança". Escrevendo no século seguinte, o cronista Simeão de Durham narrou: “Eles devastaram e saquearam miseravelmente tudo. Pisaram nas coisas sagradas com seus pés imundos, cavaram os altares e saquearam todos os tesouros da igreja. Alguns dos irmãos eles mataram e outros levaram consigo acorrentados, desnudando a maior parte deles, insultando e lançando-os portas a fora. Alguns eles afogaram no mar”.
Poucas semanas depois da atrocidade, uma pessoas chamada Alcuin, um conselheiro sênior de Carlos Magno — o homem mais poderoso da Europa — escrevia ao rei da Nortúmbria para expressar os seus choque e horror pelo ataque. "Nunca apareceu na Grã-Bretanha tanto terror como sofremos desses pagãos, nem se pensava que tal invasão pelo mar pudesse ser feita", declarou Alcuin. 'Eis que a igreja de São Cuthbert salpicada com o sangue dos sacerdotes de Deus, despojada de todos os seus ornamentos; o lugar mais venerável do que todos na Grã-Bretanha é dado como presa aos pagãos'.
O mosteiro de Lindisfarne era muito valorizado — não apenas por Alcuin, que era de York — pois, foi onde o cristianismo se restabeleceu no norte da Inglaterra. Lá, 150 anos antes, St Aiden fundou uma comunidade religiosa com um grupo de monges de Iona, a mando do Rei da Nortúmbria. Depois um bispo de Lindisfarne, St Cuthbert, viria na década de 790 a ser considerado pelos anglo-saxões 'o santo da nação inglesa', segundo o historiador e radialista Michael Wood, autor de “Search of the Dark Ages”. Explicando em parte o choque que o ataque causou. Entre os muitos tesouros da comunidade estavam os “Evangelhos de Lindisfarne”, um manuscrito iluminado feito em 710, que hoje é aclamado como um dos maiores tesouros literários da Idade Média.
Mais do que monges
Lindisfarne não era apenas de importância religiosa, diz o Dr. David Petts, professor associado do departamento de arqueologia da Universidade de Durham. Na década de 790, a comunidade de Lindisfarne em Holy Island também era uma potência econômica e política. “Às vezes é enquadrada como um mosteiro em uma ilha remota com muitos monges olhando vagamente para o além”, disse Petts. 'Mas, na verdade, o que fica claro pela arqueologia e pela história é que foi uma organização muito grande; que explorava o mar ao redor, a qual tinha enormes propriedades no continente — era provavelmente o maior centro populacional do norte de York durante o início do mundo medieval.
Com talvez cerca de 400 pessoas vivendo lá — das quais metade eram monges e irmãos leigos, com arrendatários e artesãos formando o restante, esta comunidade insular era enorme para os padrões da Inglaterra rural anglo-saxônica, disse Petts, que escavou em Lindisfarne nos últimos sete anos. Também era rica, com uma propriedade que se estendia de 15 a 20 milhas (24 a 30 km) pelo norte da costa até Berwick-upon-Tweed. Além disso, ao longo do século anterior, os monges do mosteiro tiveram muito tempo para acumular suas riquezas.
Além de oferecer um alvo tentador por si só, a posição de Lindisfarne era agravada pelas condições da Nortúmbria — devido uma agitação política prolongada. Apenas cinco anos antes do ataque, o Rei da Nortúmbria foi assassinado; regicídio, herdeiro-assassinato, traição e sucessões complexas marcavam a paisagem da época. "O que você realmente tem é esse período de cerca de cinco anos de conspirações e contra conspiração absolutamente horríveis, com assassinatos de reis e famílias reais", afirmou Wood. "Você dificilmente teria uma chance de permanecer vivo por muito tempo, a julgar pela política interna — e é nesse momento que o ataque viking a Lindisfarne aconteceu".
E isso não foi coincidência, porque os vikings certamente tinham uma boa ideia do que estava acontecendo — afinal, eles navegavam para cima e para baixo pelas costas, comprando e vendendo mercadorias, já há algum tempo. Como evidência, Petts aponta isótopos ósseos de enterros pré-793 de Bamburgh, um castelo real ao longo da costa de Lindisfarne, expondo a presença escandinava anterior a invasão. “São pessoas que conheciam aquela paisagem, a marinha e o mundo social”, disse ele.
Um "cavalo de Tróia viking"
Para explicar o que pode ter acontecido naquele dia, olhamos para um incidente que ocorreu alguns anos antes em Wessex em 788, quando três navios vikings desembarcaram em Portland. O oficial local, o reeve, foi registrá-los: "O reeve foi até lá e tentou obrigá-los a ir para a morada real, pois ele não sabia quem eram ", registrou a Crônica Anglo-saxã”, e então, eles o mataram'.
Petts acredita que provavelmente o ataque a Lindisfarne tenha sido um desembarque de três ou quatro navios – dando-nos um número total de talvez 100 guerreiros vikings para atacar. Ainda assim, como o pobre reeve galopando para encontrar os navios em Portland, os monges de Lindisfarne não sabiam o que estava por vir. “Acho que não olharam às velas listradas no horizonte em pânico”, diz Petts. 'Foi muito mais um “Cavalo de Tróia”. Eles apareceram e, uma vez na ilha, sacaram as espadas. Como resultado, o arqueólogo acrescenta: "Os monges podiam não ter percebido, até que fosse tarde demais, que se tratava de saqueadores, não comerciantes".
De acordo com Peter Heather, professor de história medieval no King's College, em Londres, o ataque a Lindisfarne sinalizou um momento crítico ao surgimento dos vikings no cenário mundial. Até então, os escandinavos estavam envolvidos no comércio através do Canal, principalmente pelo fornecimento de peles e de escravos — sendo os primeiros destinados à corte carolíngia em Aachen ou vendidos à nobreza anglo-saxônica e os últimos aos principais mercados de escravos europeus.
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No entanto, como a maioria dos produtores primários, os vikings ganhavam a menor parte por seus esforços. "Eventualmente, eles perceberam que a maneira de ganhar dinheiro com essa atividade era cortar o intermediário e se envolver diretamente", afirmou Heather, quem está conscrevendo um livro sobre a ascensão do poder naval viking, junto do professor Jan Bill, curador do Museu do Navio Viking em Oslo. Uma vez do outro lado do Canal, o envolvimento dos vikings com o comércio, rapidamente progrediu para invasões. “Suspeito que fossem simultâneos", disse ele. 'Eles ainda não tinham tipos diferenciados de navio’. Mais tarde, você poderia dizer se seriam invasores ou comerciantes pelo tipo de embarcação.
De fato, mesmo antes de decidirem roubar de seus possíveis clientes, os vikings tinham seus estoques: escravos. “Eles foram traficantes de escravos”, observa Heather. — De onde diabos você consegue escravos? Alguém está invadindo... este não é um processo pacífico.
Pelas fontes, sabemos que os vikings deixaram Lindisfarne levando escravos (Alcuin tentou levantar resgates para libertá-los). Porém, inicialmente, os invasores vikings que desembarcaram naquele dia queriam prata – porque, na Escandinávia, isso lhes comprariam terras, pagariam dotes de casamento e lhes dariam status. Sem surpresa, centros monásticos como Lindisfarne tornaram-se os principais candidatos para suprir a demanda viking por prata: um ano depois, os nórdicos saquearam a abadia beneditina em Jarrow; depois, saquearam a abadia de Iona, na costa oeste da Escócia. Não é à toa, como observa Petts, que as sepulturas vikings no oeste da Noruega são uma das melhores fontes de relicários medievais.
No entanto, apesar da retórica, o ataque de 793 não destruiu o mosteiro de Lindisfarne. Entre os sobreviventes estava os iluminados Evangelhos de Lindisfarne. A comunidade religiosa também sobreviveu. Em 875, com a intensificação dos ataques vikings, a maioria dos monges e os restos mortais de São Cuthbert foram removidos e levados para um local seguro — entretanto, a casa religiosa resistiu. Assim como a importância de Cuthbert.
Das cinzas do ataque
Cem anos depois, na década de 890, os vikings conquistaram a Nortúmbria (assim como todas as terras do leste da Inglaterra), e os saxões ocidentais resistiram contra eles sozinhos, dentre os antigos reinos anglo-saxões, embora pela “pele de seus dentes”.
Neste ponto, segundo Michael Wood, os registros dos cronistas do norte foram integrados às crônicas de Wessex, preservando-os sob o olhar de Alfredo em Winchester. “A essa altura, todos entenderam que os ataques eram ameaças existenciais maciças, então, ao escrevê-los um século depois, seu significado ficou absolutamente claro”, afirmou.
Além disso, há evidências de que os reis saxões ocidentais, como Alfredo, viam São Cuthbert como seu patrono, sublinhando a importância contínua de Lindisfarne. “Eles tinham uma história — e ela aconteceu muito cedo, não era uma ficção posterior”, disse Wood, “Cuthbert apareceu para Alfredo, o Grande em uma visão, prometendo a ele que, se sua família permanecesse firme, eles acabariam sendo reis da Inglaterra.' O que eles foram — e mantiveram St Cuthbert perto deles também.
Portanto, não é de surpreender que o fatídico dia de junho de 793 tenha sido lembrado, mesmo que não tenha sido o primeiro ataque. Pois, além da morte do reeve em Wessex, há evidências de ataques vikings a Kent em 753. “Quando você junta a imagem dos ataques vikings nas Ilhas Britânicas, provavelmente adivinha que essa era uma condição de guerra de baixo nível, a qual existiu durante o que costumávamos chamar de Idade das Trevas”, apontou Wood, “e que a aposta aumenta em Lindisfarne, pois foi um ataque devastador em um lugar muito importante”.
E isso, juntamente com o fato de ter um estudioso da Nortúmbria, Alcuin, na corte de Carlos Magno em Aachen, garantiu que Lindisfarne nunca fosse esquecida. “É o primeiro dano realmente barulhento e de alto nível que os vikings causaram”, concluiu Heather.
Mas não o último. Antes que os vikings tivessem seu fim, em meados dos anos 1100, eles fizeram muito mais barulho, porém Lindisfarne gritou mais alto que o resto. "Foi o primeiro ataque ao Norte", concluiu David Petts. 'Foi uma surpresa, um raio do céu’.
FONTE: National Geographic UK
MARSH, Alec. In 793AD, Vikings attacked Lindisfarne. Here's why it was so shocking. National Geographic UK. Londres, 21 de jun. de 2022. Disponível em: < https://www.nationalgeographic.co.uk/history-and-civilisation/2022/06/in-793ad-vikings-attacked-lindisfarne-heres-why-it-was-so-shocking/amp>. Acesso em: 27 de jun de 2022. (Livremente traduzido pela Livros Vikings)
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